A fase de pós-colheita do café é um momento decisivo, que impacta diretamente a qualidade da bebida e, claro, a sua rentabilidade. Com tantas opções de processamento disponíveis, é possível criar cafés com os mais variados perfis e qualidades.
Contudo, todo o cuidado investido na colheita pode ser perdido se o processamento for feito de forma inadequada. Um erro nesta etapa pode comprometer o trabalho de um ano inteiro.
Neste guia, vamos explorar as principais técnicas de processamento, os cuidados essenciais com a lavoura de café após a colheita e como transformar seu produto em um diferencial de mercado.
Entendendo a Pós-Colheita do Café
A pós-colheita do café se divide em duas grandes etapas: o processamento e o armazenamento do café.
Enquanto o armazenamento segue regras mais definidas, a etapa de processamento oferece um verdadeiro universo de possibilidades. As dicas a seguir valem tanto para o café arábica quanto para o robusta (conilon), embora o mercado de cafés especiais de robusta ainda esteja em desenvolvimento.
A escolha de um método de processamento em vez de outro depende do objetivo de cada produtor e do mercado que ele deseja alcançar.
De Onde Vem a Qualidade do Café?
A qualidade de um café é construída desde a lavoura. Ela é definida por características como o tamanho, a cor e a integridade do grão, além, é claro, do sabor e aroma na xícara.
Esse resultado final é fruto de uma interação complexa entre diversos fatores:
- Variedade: A genética da planta define o potencial de qualidade.
- Clima: As condições de temperatura e chuva da região são fundamentais, mas não podemos controlá-las.
- Manejo da lavoura: Nutrição, controle de pragas e doenças.
- Processo de colheita: O ideal é colher a maior quantidade possível de frutos maduros (cereja).
- Pós-colheita: As etapas de processamento, secagem e armazenamento.
Com exceção do clima, todos os outros fatores são decisões que o produtor toma. Portanto, para produzir um café de alta qualidade, é preciso planejar cada um desses passos com atenção.
O Papel do Processamento de Café na Qualidade
Uma pergunta muito comum é: a pós-colheita cria qualidade? A resposta é direta:
A pós-colheita não cria qualidade. Ela preserva, altera ou até destrói a qualidade que veio da lavoura.
É fundamental iniciar o processamento logo após a colheita para evitar fermentações indesejadas e outras perdas que podem comprometer o lote.
As Etapas Decisivas do Processamento
(Fonte: QNInt)
Um bom processamento é chave para um produto final de excelência. A maioria das etapas serve para preservar a qualidade e remover impurezas ou defeitos.
No entanto, três etapas específicas alteram diretamente as características do café na xícara:
- Despolpamento: Remoção da casca do fruto.
- Remoção da mucilagem: Retirada da camada açucarada que envolve o grão.
- Secagem: Redução da umidade do grão para o nível ideal de armazenamento.
Esses três processos afetam diretamente o corpo, o aroma, a acidez e outras características sensoriais da bebida. É aqui que a mágica acontece e as possibilidades se multiplicam.
Tipos de Processamento de Café: Um Mundo de Opções
Para explorar o universo dos cafés especiais, é importante conhecer as técnicas básicas de processamento. Não existe uma única decisão correta; cada método produz um perfil de bebida diferente a partir do mesmo lote de café colhido.
Tudo depende do mercado que você quer atender. Inclusive, é totalmente possível produzir vários tipos de café na mesma propriedade.
O primeiro passo, independentemente do caminho escolhido, é separar os frutos maduros (cereja) dos frutos verdes. A partir daí, a primeira grande decisão é: despolpar ou não?
Café Natural: Secagem com “Casca e Tudo”
No processamento via seca, conhecido como café natural, optamos por não despolpar os frutos. Nesse caso, os grãos são levados para secar inteiros, exatamente como foram colhidos.
(Fonte: Ensei Neto – Paladar Estadão)
A bebida resultante desse método geralmente tem maior corpo e doçura, pois o grão absorve os açúcares da polpa durante a secagem. Este é o método de processamento mais tradicional e amplamente utilizado no Brasil.
Despolpamento: Novos Caminhos para o Grão
Se você optar por despolpar o café, uma nova pergunta surge: remover a mucilagem ou não? A resposta, mais uma vez, é: depende do perfil de café que você busca.
Com o despolpamento, a casca é removida, abrindo caminho para outros tipos de café, como o cereja descascado (CD) e os cafés desmucilados (ou lavados).
Uma vantagem do despolpador é que ele pode ser regulado para separar mecanicamente os frutos verdes, que não são despolpados e podem ser processados à parte.
Cereja Descascado (CD) e os “Honeys”
O cereja descascado é um meio-termo entre o natural e o lavado. Neste método, a polpa (casca) é retirada mecanicamente, mas o café é colocado para secar com toda ou parte da mucilagem ainda aderida ao grão.
O resultado é um café que seca mais rápido que o natural e apresenta uma bebida mais encorpada que a dos lavados.
Vale destacar que o cereja descascado é uma inovação brasileira que ganhou o mundo. Em outros países, esse método deu origem aos famosos “honey coffees”, que têm um grande apelo no mercado internacional de cafés especiais.
(Fonte: Di Bartoli)
Cafés Desmucilados ou Lavados
Neste processo, o objetivo é remover completamente a mucilagem antes da secagem. Isso pode ser feito de duas formas:
- Mecanicamente: Utilizando um equipamento chamado desmucilador.
- Por fermentação: Deixando os grãos em tanques com ou sem água para que microrganismos consumam a mucilagem.
Geralmente, o café lavado resulta em uma bebida com menos corpo, mas com uma acidez mais pronunciada e brilhante, destacando notas mais delicadas.
A Fermentação Controlada de Cafés
A fermentação pode ocorrer naturalmente nos frutos, seja no pé ou após a colheita. No entanto, aqui vamos falar sobre as fermentações controladas, uma técnica que tem gerado resultados incríveis para cafés especiais.
Esse processo pode ser realizado em tanques de fermentação específicos ou até mesmo em bombonas de 200 litros. Para garantir um resultado consistente e replicável, é crucial monitorar alguns parâmetros:
- Temperatura
- pH (acidez)
- Brix (teor de açúcar)
- Tempo de fermentação
Sem esse controle, o resultado é uma questão de sorte, e você pode nunca mais conseguir reproduzir aquele café excepcional. É preciso ter cuidado, pois fermentações indesejadas podem arruinar o lote.
Normalmente, o objetivo é uma fermentação anaeróbica, ou seja, sem a presença de oxigênio. Para isso, é essencial vedar o tanque e usar um “airlock” (válvula de ar) para permitir que o gás da fermentação saia sem que o ar externo entre. É possível improvisar uma versão caseira com uma mangueira e uma garrafa com água.
Ilustração de um “airlocker” caseiro. A água na garrafa impede a entrada de ar no tanque de fermentação. (Fonte: Blog do Breda)
Além disso, o tempo máximo de fermentação deve ficar entre 48 e 72 horas, dependendo da temperatura local. Períodos mais longos aumentam o risco de fermentações negativas.
Respeitando essas regras, a criatividade pode voar longe. Há produtores fermentando café com polpa de maracujá, leveduras de cerveja ou de vinho. Cada experimento cria um perfil sensorial único a partir do mesmo café. O mercado está aberto a novidades, então não tenha medo de fazer testes em lotes pequenos!
A Secagem do Café: Preservando a Qualidade
Assim como nas etapas anteriores, a secagem oferece diferentes caminhos. A escolha depende do volume de produção, do investimento disponível e do foco em rapidez ou qualidade.
- Secagem ao sol: É o método tradicional, realizado em terreiros de cimento ou de terra.
- Secadores rotativos: Equipamentos mecânicos que agilizam o processo.
- Secagem à sombra: Um processo mais lento, que pode resultar em perfis sensoriais diferenciados.
Terreiros para secar café (Fonte:
)
Secadores rotativos (Fonte:
)
Uma tendência que vem ganhando força no Brasil são os terreiros suspensos, também conhecidos como camas africanas. Neles, os grãos secam sobre uma tela elevada do chão, podendo ficar ao sol ou à sombra.
Terreiros suspensos, também chamados de camas africanas (Fonte:
)
- Se o objetivo é rapidez, o secador mecânico pode ser a melhor opção.
- Se o volume é muito grande, o terreiro convencional é uma alternativa viável.
- Se o foco é a máxima qualidade, os terreiros suspensos têm apresentado resultados promissores. A melhor circulação de ar evita fermentações indesejadas e o afastamento do solo reduz os riscos de contaminação.
A Torra do Café: O Toque Final
A torra deve ser realizada o mais próximo possível da venda, pois o grão torrado perde qualidade mais rapidamente.
Uma torra mal executada pode destruir todo o trabalho realizado desde a lavoura até o processamento. É essencial que a torra seja uniforme e atinja o ponto desejado, sem queimar o grão. O sabor final do café é uma combinação entre o processamento na fazenda e a torra.
Existem basicamente três níveis de torra, cada um adequado para um perfil de bebida diferente:
- Torra clara: Produz bebidas mais suaves, com menos amargor, acidez acentuada e menos corpo. É uma boa escolha para cafés expressos que destacam a origem.
- Torra média: Resulta em cafés mais equilibrados, com bom balanço entre acidez, doçura e corpo. Geralmente funciona muito bem para cafés coados.
- Torra escura: Gera cafés menos ácidos, mais encorpados e com amargor pronunciado — o famoso “café forte”. É preciso cuidado para não torrar demais e queimar o café.
Pontos de torra do café, da clara para a escura (Fonte: Grão Gourmet)
Naturalmente, existem inúmeras variações entre esses três pontos básicos. A escolha do ponto de torra ideal dependerá do perfil do seu café e do gosto do seu cliente.
Qualidade como Diferencial de Mercado
Quando o preço do café commodity está baixo, investir em qualidade não é um luxo, é uma estratégia de negócio.
Enquanto o mercado tradicional está saturado de cafés comerciais, existe uma demanda crescente por cafés especiais e diferenciados. Os compradores nesses nichos valorizam a qualidade, a história do produtor e a consistência, e por isso estão dispostos a pagar muito mais pelo produto.
Os prêmios podem variar de algumas centenas de reais a mais por saca até valores expressivos por quilo, no caso de microlotes excepcionais. O céu é o limite para cafés de altíssima qualidade.
Como vimos, a qualidade é um quebra-cabeça complexo. O produtor que deseja se destacar deve planejar cada peça, desde a escolha da variedade até, e principalmente, as etapas de pós-colheita e processamento.
Armazenamento do Café: Preservando o Valor
Para o armazenamento de café, existem regras e recomendações bem estabelecidas. No entanto, o mercado de cafés especiais está impulsionando novas técnicas.
Tradicionalmente, o café é armazenado em sacaria de juta ou em big bags. Mesmo com o controle de umidade e temperatura do armazém, alguma perda de qualidade ao longo do tempo é inevitável. Em um ano de armazenamento, por exemplo, um café especial pode perder pontos e ser reclassificado.
Por isso, há uma busca por novas soluções, como embalagens a vácuo ou o uso de atmosfera modificada para armazenar cafés especiais. São tendências que prometem preservar por mais tempo o trabalho feito no campo.
Cuidados com a Lavoura Após a Colheita
Com o café colhido e processado, o trabalho não para. É hora de cuidar da lavoura para garantir a saúde das plantas e a produtividade da próxima safra.
- Faça a varrição: Recolha os grãos que caíram no chão para evitar a proliferação da broca-do-café.
- Realize as podas: Próximo ao final da colheita é o momento ideal para fazer as podas de manutenção ou renovação. Consulte um engenheiro agrônomo para definir o tipo de poda mais adequado para sua lavoura. Leia mais em nosso artigo sobre “Poda do cafezal: Como fazer para aumentar sua produção”.
- Monitore pragas e doenças: Fique atento ao ataque de pragas e doenças e realize as aplicações de controle quando necessário.
- Proteja as plantas: Os cortes das podas são portas de entrada para patógenos. O uso de produtos à base de cobre (cúpricos) pode ajudar a proteger as plantas.
Conclusão
A qualidade do café é o resultado da interação de diversos fatores, e a pós-colheita é uma das etapas mais críticas. Lembre-se que o processamento não cria qualidade, mas tem o poder de preservá-la, transformá-la ou destruí-la.
As várias opções de processamento disponíveis são uma grande oportunidade para o produtor criar diferentes tipos de café em uma mesma propriedade, agregando valor e conquistando novos mercados.
Ao mesmo tempo, não se esqueça dos cuidados com a lavoura após a colheita. Uma planta bem cuidada hoje é a garantia de uma boa safra amanhã.
Perguntas Frequentes
Qual a principal diferença entre o processamento de café via seca (natural) e via úmida (lavado)? A principal diferença está na remoção da polpa e da mucilagem antes da secagem. No método via seca, o fruto seca inteiro, o que resulta em uma bebida mais doce e encorpada. Já no método via úmida, a polpa e a mucilagem são removidas, produzindo um café com acidez mais acentuada e sabores mais delicados.
Por que a etapa de secagem é tão crucial para a qualidade do café? A secagem é fundamental porque reduz a umidade do grão para um nível seguro (idealmente entre 10% e 12%), o que impede a proliferação de fungos e a ocorrência de fermentações indesejadas durante o armazenamento. Uma secagem malfeita pode destruir todo o potencial de qualidade desenvolvido na lavoura e no processamento.
Como saber o momento ideal de parar a secagem do café? O ideal é utilizar um medidor de umidade para aferir com precisão quando os grãos atingem o teor de umidade ideal, que fica em torno de 11%. Produtores experientes também podem avaliar pela coloração e pela textura do grão, mas o uso de equipamentos garante maior segurança e consistência ao lote.
Quais são os principais riscos de um armazenamento inadequado dos grãos de café? Um armazenamento inadequado pode levar à perda de qualidade sensorial, com o surgimento de sabores indesejáveis de mofo ou terra. Além disso, a umidade excessiva pode causar o desenvolvimento de micotoxinas, comprometendo a segurança do alimento, e a perda de valor comercial do produto.
O método cereja descascado é indicado para qualquer tipo de café? O método cereja descascado (ou “honey”) é bastante versátil e pode ser aplicado a diferentes variedades, mas se destaca em cafés que possuem um bom potencial de doçura. Ele é um excelente meio-termo, pois seca mais rápido que o natural e resulta em uma bebida com mais corpo e doçura que os cafés lavados.
De que forma a fermentação controlada pode alterar o sabor do café? A fermentação controlada permite que microrganismos específicos atuem sobre os açúcares da mucilagem, criando compostos aromáticos complexos. Dependendo do método, é possível produzir cafés com notas sensoriais exóticas, como frutas tropicais, especiarias ou até mesmo vinhos, agregando um valor significativo ao produto final.
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- Armazenamento de café: dicas para fazer corretamente: O artigo principal dedica uma seção breve ao armazenamento. Este candidato expande massivamente esse tópico, funcionando como um guia completo sobre a etapa final da pós-colheita. Ele detalha os tipos de estruturas, embalagens e as condições ideais para preservar o valor do café a longo prazo, respondendo diretamente à necessidade de proteger o investimento feito no processamento.
- Como montar um terreiro suspenso e quando vale a pena investir nele: Este artigo transforma uma recomendação do texto principal – o uso de terreiros suspensos para máxima qualidade – em um guia prático e acionável. Ele detalha como construir e manejar essa estrutura, oferecendo um valor imenso para o produtor que leu sobre a técnica e deseja implementá-la. É a ponte perfeita entre a teoria da qualidade e a execução prática na fazenda.
- Como estimar o custo de produção do café (+ calculadora rápida): O artigo principal defende o investimento em qualidade como um diferencial de mercado. Este artigo fornece a ferramenta essencial para validar essa estratégia: o cálculo do custo de produção. Ele ensina o produtor a medir se os investimentos em despolpadores, tanques de fermentação e secagem especializada estão, de fato, gerando um retorno financeiro positivo.